A ANTIBAILARINA
Não deu para saber se a menina estava feliz e orgulhosa. Ou se os padrões do mundo já haviam dominado sua autoestima.
O que sei é que a cena parecia saída de um filme antigo. Podia ser Chaplin e seu vagabundo roto.
No ponto de ônibus, acompanhada por uma mulher, sua mãe talvez, ela perscrutava os livros encardidos e amassados dispostos na estante do projeto de incentivo à leitura.
Tinha o olhar um pouco baixo e opaco. Diferia nisso do tradicional aspecto vivaz das crianças de sua idade.
Não devia passar dos sete anos. Bem menos. Entre quatro e seis. Era miúda e longilínea. O cabelo em coque.
Vestia uma roupa de balé. Mas não havia na roupa nem na menina o glamour das bailarinas ao qual estamos acostumados.
Seu maiô era rosa claro. Não que tivesse nascido assim. Tornou-se. Gasto pelo tempo perdeu as nuances. A cor quase não existia. Era necessário um esforço dos olhos para enxergar a pigmentação de outrora.
Hoje exibia mais um amarelo do que qualquer outra tinta.
A saia, ou tutu, já não se erguia sobre a textura do material. Ao contrário, era murcho e caído como folhas dormidas. De tão carente de arqueado quase grudava nas pernas da criança.
Embora não estivessem tão esmaecidas quanto o maiô, as meias também pareciam sombras do que já foram. E estavam furadas, com rasgos meticulosamente arredondados como se tivessem sido feitos à mão. Petit pois.
Havia um coque no alto da cabeça. As mechas já se soltavam de lá. E a parte de cima, que devia estar penteada e rente ao couro cabeludo, fazia ondulações como uma montanha-russa.
A imagem da menina era a da antibailarina.
Mesmo assim, ao tempo em que extrapolava a representação do que era ou do que vestia, exprimia as possibilidades de um vir a ser.
Simbólico e necessário, o traje haveria de ser o menos importante. Valia a aproximação a uma dança que ainda cheira à tinta de suntuosos palcos e palácios.
Aquela menina não devia estar usando a roupa – vilipendiando-a, na verdade.
Aquela menina não deveria saber de balé.
Aquela menina não devia tentar se igualar a quem realmente é permitido dançar sobre a ponta dos pés.
Aquela menina, tão pequenina, parecia assustada, afinal.
Com o que conseguia ser e sentir quando usava aquelas peças rosa-amareladas.
Era vesti-las e se sentir capaz de tudo. Não apenas dançar.
Super-heróina.
E não importava se houvesse quem pensasse que ela vilipendiava o traje, usando-o de forma tão desleixada. Ou que não deveria saber de balé. Ou que não devia tentar se igualar a quem realmente é permitido dançar sobre a ponta dos pés.
Importava que aquela menina, tão pequenina, podia voar.