QUE O NOSSO OLHAR NÃO SE ACOSTUME ÀS AUSÊNCIAS
O músico e amigo Pedro Vasconcellos alertou no Facebook que o recém-nascido e já aclamado Eicho – Encontro Internacional de Choro, promovido pelo Clube do Choro de Brasília, entre esta terça-feira, 23, e o domingo, 28, não tinha mulher na programação ou apenas uma, agora não recordo.
Nos anúncios do evento vejo hoje a expectativa incutida no público diante do que seria uma “atração surpresa”. Pensei: deve ser uma mulher. Colocada de última hora como mea culpa dos organizadores para o “lapso”. Era uma piada interna minha. Mas, nada engraçada, me fez lembrar de casos em que mulheres – negras – como Julia Pastrana ou Sarah Baartman, foram tratadas como atrações. Em circos e afins. Viveram grandes tristezas e, mesmo após a morte, fizeram o papel do exótico objetificado. Para deleite das pessoas de bem de então.
No trabalho, uma colega recebeu, pelos Correios, um convite (não entendeu a razão já que não é da área dela) para um evento muito pomposo, da área de Direito, que deve acontecer em Brasília em maio. Eu olhei o material e exclamei, diante de fotos sucessivas de homens de pele clara: Nenhum preto. E apenas três mulheres.
Recebo agora uma mensagem da escritora e professora e amiga Leila de Souza Teixeira, alertando para o fato de que está acontecendo um burburinho em evento (do IMS) “com 18 poetas brasileiras (os) – nenhum negro ou negra”, dizia. Eu li a mensagem rapidamente e saí de casa. Vim pensando sobre a questão. Tão dramática quanto natural ou naturalizada.
Ainda no domingo, 21, chamei a atenção, em minha conta no Instagram, para uma imagem que eu via na televisão em cobertura ao vivo de evento alusivo ao aniversário de Brasília. A repórter tinha a pele clara. Os músicos tinham pele clara. E o público que aparecia na tela, também. Em pouco tempo, mais dois repórteres entraram em pontos diferentes da festa. Os dois tinham pele clara. E nenhum entrevistado até ali era preto.
A mesma escritora e professora e amiga Leila de Souza Teixeira, questionou o fato de consumirmos produtos culturais em que se apresentam como detentores da fala o homem branco e hétero (nele contidos todos os símbolos culturais que sua presença sutilmente encobre e alardeia ao mesmo tempo).
E eu que acabo de divulgar dois textos em uma coletânea organizada por uma mulher, de textos escritos por mulheres e que tem no título a palavra Maria, pensei: Isso é resistência ou submissão? É ganho ou limitação de espaço?
Por que Conceição Evaristo, mulher negra, pergunta a razão de sua notoriedade como escritora ter acontecido por volta dos seus 70 anos? O que uma mulher, o que eu, tenho que enfrentar diariamente, entre compromissos domésticos, maternos, pessoais, profissionais, amorosos, sexuais, familiares, de saúde, financeiros e todos os perrengues diários e leões a serem mortos e cabeça para ser posta no lugar? Tantas jornadas. Tantas faltas. E mais solidões, dúvidas, medos. E por vezes uma vontade louca de vida. De liberdade. De alegria. De cantoria. De uma mesa com pão. Vinho. E flor. Vontade de amor.
Que tempo, que sanidade, que leveza, que inspiração se consegue tirar de tudo isso? Não tenho a resposta. Mas tento escrever meus textos – diários ou não. Na periodicidade possível. Nas condições possíveis. Porque sempre descubro que eles são minha melhor fonte de cura. E mesmo quando não vão para o papel, invadem minha mente. Sem trégua.
Virgínia Woolf dizia que “uma mulher deve ter dinheiro e um teto todo seu, se ela quiser escrever ficção”. Eu concordo.
Diante de tudo isso – tanto natural quanto naturalizado – uma resposta muito comum dos desavisados é: mas isso acontece em pleno século XXI? Eu não aguento mais esse argumento-pergunta-tolice. Quero saber o que o pleno século XXI trouxe de mudanças para esse estado de coisas. Para esse estado das pessoas.
Anseio que o nosso olhar não se acostume jamais – em pleno século XXI – à ausência das mulheres e das gentes pretas (seja de que gênero for) e de todos os que não estiveram na normatividade. Onde quer que estejamos ausentes.