O SOM AGUDO DO PRECONCEITO
Devia ter talento, o menino.
Venceu o concurso que daria, como prêmio, a oportunidade que talvez nem esperasse, nem soubesse o que traria como louros, menino que era.
Mesmo assim tão miúdo e sem entendimento do que seria aquilo, tirando uma sensação, uma intuição embrionária, uma certeza infantil. De que, sim. Seria bom. Era o que todos diziam. E ele acreditou. Movido por inocência pueril.
Quantos anos mesmo?
Cinco. Seis. Sete?
Tão pouca idade, o menino. Podia. Devia ter esquecido.
Não é o destino dos acontecimentos na vida dos infantes? Perdem-se em brumas. Não se sabem verdadeiros ou falsos. Sonhos. Devaneios. Com o passar do tempo.
Pois o menino consentiu.
Participou. Venceu. E recebeu o prêmio.
A palavra parecia brilhar (n)os olhos pequenos.
E o prêmio vinha carregado de novas possibilidades.
Não era medalha. Não era presente. Não era um valor em dinheiro.
Era algo que podia abrir portas. Definir uma carreira. Levá-lo ao sucesso – outra palavra que soava bem, mesmo sem apreender o significado em sua totalidade.
Era algo que poderia fazê-lo crescer. Não ainda na estatura. Mas no que pensava sobre si.
Poderia levá-lo a conhecer outros lugares. Outras pessoas. Outras realidades.
Tirá-lo do seu lugar. Alargar seu mundo. Ampliar suas perspectivas. Para uma vida toda. Com sorte.
Era a chance de cantar. E não apenas para a turma. Mas a para a escola inteira. Seus alunos. Seus professores. Demais funcionários.
E havia mais.
Não seria uma apresentação qualquer. Criada apenas para recompensar o vencedor.
Era dia de festa.
E o menino, acompanhado por alguns instrumentistas, emprestaria sua voz e o reconhecido dom de empunhá-la, para falar sobre amor. Incondicional. O amor que se sente por uma figura tão especial. E é importante demonstrar. No Dia das Mães.
Ele a soltou.
Nervoso. Mas seguro.
Como podia. Como queria. Como não sabia fazer diferente.
E a sua voz. De repente perdeu o encanto que o fez ser escolhido.
Havia expressões de contentamento.
Sorrisos de canto de boca.
Lágrimas escapulindo de cantos de olhos.
No público.
Tudo ia como tinha de ser. Cheio de emoção, afinal.
Mas o menino. Ferrou com tudo.
O agudo final.
Não cabia num corpo de menino.
Não era coisa de menino.
Fez corar todo o público.
Precisou ser retirado do palco.
A família foi chamada.
O menino levado a sala da diretoria.
Não tinha cabimento. Não estava certo.
Aquilo não era coisa de estar em palco sob holofotes.
Era para ser escondido aquele menino. Sua voz. Seu som feminino.
Aquilo embaraçava. Aquilo era pecado. Aquilo era heresia.
Importante calar o menino.
Para não manchar a reputação da família.
Para não envergonhar. Pai. Mãe. Ainda mais naquele dia. Das mães.
O menino. Calou. A dor.
Mudou o destino dos acontecimentos.
Soltou a voz. E nunca esqueceu.
O som agudo do preconceito.
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