Uma das minhas memórias de infância está ligada ao jornal. De papel. Passei a admirar esse meio de comunicação no trabalho do meu pai, o Posto de Enfermagem Manoel Barbosa, onde passava boa parte do meu tempo livre. Lugar em que folheava os calhamaços e lia em voz alta notícias muitas vezes impróprias para uma criança, como as que tratavam do crime hoje configurado como feminicídio.
O lugar era capitaneado por ele e contava com os serviços de mais dois profissionais da área, seu irmão, Chico, e a maternal Paula Gama, que acompanhou o meu crescer com bons conselhos e ótima companhia. Era nas mãos dos três que muita gente largava o seu sofrer ou arranjava mais alguns, como a picada de uma agulha. O furo nas orelhas de uma bebê. A cura para o ferimento inflamado.
A veia que ninguém mais conseguia encontrar não passava despercebida por eles e logo era obrigada a assumir que perdera seu esconderijo no corpo alheio. Por isso, o Posto era recomendado por médicos que admitiam: isso aqui só com Seu Manoel.
E foi por essa fama de mãos milagrosas que ele chegou à Campina Grande. Vindo das Alagoas, com seu curso de enfermagem ministrado pela Cruz Vermelha. Era uma grande vitória. Dado que papai nasceu em cidadezinha, era arrimo de família e foi responsável por fazer aparecer algum dinheiro para que a viúva Dona Ana, uma mulher de origem indígena, possivelmente Cariri, de rosto largo e quadrado como os índios americanos, pudesse cuidar de seus outros tantos rebentos.
O dinheiro ele conseguia carregando feixes de cana de açúcar, levando pão em balaios de palha para a casa da freguesia, enquanto sonhava em ler e escrever. Feito que, mais tarde, alcançou como autodidata que se arvorou a ser.
Devia ser por isso que papai gostava de ter as palavras bem perto de si – como prova de sua conquista. Os ambientes que frequentava, nossa casa, o posto, eram salpicados pela escrita impressa em jornais e livros.
Ele também não abria mão do rádio. Ligado ainda de madrugada, soava o resto do dia como pano de fundo da rotina. Chegou a escrever crônicas para serem lidas em uma emissora local. Foi também um dos fundadores do Grêmio Literário Machado de Assis, espaço que o colocou entre, e como um, os maiores intelectuais campinenses da época.
Papai se dedicava a colecionar recortes, dicionários, datilografar cartas nem sempre enviadas, rabiscar folhas e mais folhas com suas memórias e letra perfilada. Desconfio que sonhava em ser escritor. Arrisco a dizer que foi um. Embora sem uma obra física para chamar de sua.
Quando os anos vieram a ser muitos, mais de 90, papai diminuiu o convívio social. Suas idas à rua, como chamávamos o centro da cidade, lugar distante alguns quilômetros e muitas estradas de barro e mato alto da nossa casa no alto do bairro de Bodocongó, diminuíram.
Eram, agora, aventuras. Empreitadas arriscadas. Furtivas, até. Brechas pelas quais ele circulava pelo Calçadão da Rua Cardoso Vieira, pelo Café Aurora e, uma vez, na Praça da Bandeira, pela Banco do Orlando, onde colhia seus jornais. De papel. Todos os publicados na Paraíba. Também esperava chegar na cidade, no final da tarde, os impressos tidos como nacionais, como o Jornal do Brasil.
Já em casa, sentava-se no terraço e lia-os todos. Também o fazia em voz alta para mamãe. Ela fingia que não estava ouvindo. Não parava seus afazeres para se dedicar àquela audição. Gostava de implicar com aquela mania dele. E ele, com a mania dela de não ler jornal. Vinha sempre nos contar que “sua mãe não lê, como pode?”.
Ela tinha lá suas razões. Era dona de uma verve invejável. Dominava a palavra falada, como pessoa pública que era. Vereadora por mais de trinta anos que foi. E estudara muito pouco. Até a quarta série. Também teve que ajudar a cuidar da prole dos pais. Queria estar na sala de aula mas estava na roça. Carregando fardos de madeira. O contrário seria o castigo em formas das famosas ‘surras de cipó’.
Quando eu ouvi a pergunta, ontem: Quer ver? É de hoje. E recebi no colo um jornal de papel, me vieram todas essas lembranças. Fiquei emocionada. Quis entender como tantos jornais de papel aceitaram virar tela de computadores, tablets e celulares.
O cheiro. As imagens. A tinta largada nas pontas dos dedos dos leitores. As sutilezas dos lugares escolhidos para essa ou aquela informação. As palavras unidas e diagramadas em um arranjo tão certeiro quanto coleções de capa dura e títulos dourados em uma estante de madeira. Talvez como as obras completas de Freud, em edição de 1950, que papai mantinha como um grande tesouro.
Penso que foi assim que me senti. Diante de algo arrojado. Como uma biblioteca com milhões de exemplares. Mas que vinha a ser apenas O Estado de São Paulo da quarta-feira, dois de setembro de 2020.
Estava diante do jornal de papel, depois de tanto tempo. E, mais que isso, cara a cara
com o papel do jornal, que me levara a um intenso (re)encontro com meu pai, Manoel Barbosa.
Imagem de Andrys Stienstra por Pixabay